Naquele dia, eu acordei sem ter dormido. Como nas últimas semanas, meu trabalho não rendeu. Sarcástico, o relógio fazia troça da minha cara, dando passos para trás. O Tempo deve ter tirado férias. Antes de sair para ver o jogo fiz uma leitura do "O livro dos Espiritos" de Alan Kardec. Precisaria de uma palavra de apoio ou consolo.
No caminho para a casa do Alexandre, onde faríamos um churrasco e veríamos o jogo, sozinho, eu pensava no que poderia acontecer. Fiz um giro em todas as possibilidades. Da alegria infinita à tragédia fúnebre. Minha única certeza era de que, independente do desfecho da noite, eu continuaria colorado. Como quando nasci. Como quando hei de renascer. Nesse mundo. Ou em outro. Já não parecia estar só. Sentia uma estranha presença. Como se me observassem. Tive a impressão de ver asas vermelhas cruzando o céu.
Em vários prédios os pendões encarnado e branco tremulavam. Lindas e bagualas como o Pampa. Novamente, éramos nós contra o mundo. Éramos Farrapos de uma nova era. Maragatos de chuteira. Peleando em grito e canção. O colorado é a hipérbole do gaúcho.
Meu rádinho inseparável notíciava que as filas que circundavam o templo alvi-rubro eram semelhantes a veias. Por elas, corria sangue de um rubro único, apaixonado. Bombando amor em quantidade inimaginável para dentro do estádio. Nas arquibancadas, 60 mil irmãos se acotovelavam, na esperança de ver e viver o momento mais importante desde que o S, o C e o I se entrelaçaram. Juntos, escreviam a história.
Quando a Academia do Povo apareceu, o concreto começou a arder. Como se abrissem as portas do Inferno, a arena um dia imaginada por Ephraim Pinheiro Cabral virou um caldeirão homérico. A fumaça brotava de baixo do gramado, do aterro, da água fervente, do umbral, e se espalhava pelo ar, tomando o mundo.
Apavorada, a torcida adversária se ajoelhava, pedindo clemência a Deus. Convicta de que o juízo final era chegado. Não haveria salvação. Deixariam a vida embalados por um réquiem de milhares de vozes coloradas. Teriam uma morte doce e vermelha. Mas ainda não era hora.
Antes de chegar até meu destino, novamente, notei asas rubras rasgando a penumbra. Um delírio. Ou não.
Postamo-nos em frente a tv. E com o breu dissipado, a bola rolou. O Beira-Rio pelava. Pulsava. Uma corrente de força desconhecida cruzava as estruturas da casa do Clube do Povo. O chão dava choques. Eletrizava de vibração quem nele pisava. A cada passe são-paulino, o Gigante bufava. Trovejava. Enviava raios em forma de gritos, apupos e xingamentos. Até que a terra tremia, e o time de Abel Braga recuperava a posse. Eu não via jogadores. Não identificava feições, nomes ou números. As camisas vermelhas jogavam sozinhas. O manto sagrado corria por vontade própria. Vida própria. Marcava. Bicava. Urrava. Transpirava. Rasgava a grama. Levantava a leiva. Batalhava cada segundo como o último. Era raça, amor e algodão. Era guerra. Era guerra!
Em novo flash, vi uma mão etérea tocando a bola e tirando-a do domínio seguro de Rogério Ceni. Empurrando-a até Fernandão. Até a explosão. Até o delírio incontido de uma nação. O sonho quase secular começava a ganhar forma de América. Chorando e sorrindo, a família colorada teve a certeza de que sairia dali para um carnaval adiado há três décadas.
No intervalo, ninguém podia imaginar o sofrimento reservado para o segundo tempo. O gol de Fabão foi uma injeção cavalar de ansiedade. Retesou músculos. Fechou semblantes. Empalideceu. Assassinou unhas. Arrancou cabelos. Despertou tiques. Com o rosto enfiado entre as mãos, eu pedi ajuda.
A partida foi reiniciada, mas algo fora do gramado me chamou atenção. Em cima da marquise central da superior, uma figura cintilava. Trajava vestes encarnadas e trazia às costas inenarráveis asas da mesma cor. A plumagem do arcanjo rubro descia dos céus e roçava a coréia. Estático, com as mãos abertas, parecia abençoar a multidão,alheia à sua presença. Meu coração não batia. O espectro fechou os olhos e apontou a destra para a goleira do placar eletrônico. A goleira de Figueroa. A goleira do gol mil. A goleira iluminada. A goleira divina. Seguindo o seu movimento, enxerguei Tinga se agachar e ouvi o Gigante gritar como nunca havia feito antes. As lágrimas embaçaram minha visão. Me voltei para o telhado que traz a inscrição da maior torcida do Rio Grande. Mahicon Librelato não estava mais lá.
A loucura que tomou conta do Beira-Rio parecia o prenúncio da tranqüilidade, mas logo foi interrompida pela expulsão do lanceiro negro da Restinga. A pressão são-paulina teve proporções inéditas no futebol brasileiro. Nunca, um time foi tão acossado e amassado dentro de seu próprio campo. Lenílson aproveitou a falha de Clemer, e o mar vermelho petrificou. Colorados de ontem e de hoje se desesperavam. Pediam o fim do jogo. Temiam o pior.
Suplicavam a América.
O filme de todos os fracassos e derrotas do Internacional passou na minha mente. Revivi meus 26 anos de espera e apoio incondicional. Minha existência marcada pela defesa das cores do clube. Por insultos e flautas. Por humilhações e soberbas. Por raiva contida e choro. Minha vida do ‘quase’. Do vice. De títulos que não pareciam feitos para mim. De glórias guardadas apenas para os outros.
Enquanto minhas lágrimas molhavam o ramo verde que trazia no peito, o serafim colorado pairava de novo sobre o Gigante. Dessa vez, não estava só. Um séquito de incontáveis espíritos desciam por suas asas e entravam em campo. Vi jogadores com trajes do início do século passado. Todo o primeiro escrete de 1909. Vi os irmãos Poppe Leão, Vicente Rao e Penha. Vi Pirilo, Javel e Risada. Vi Tesourinha e o Rolo Compressor. Vi o português Pinheiro Borda, Meneguetti, Funchal, Teté, Mestre Ênio Andrade, Abílio dos Reis e tantos outros que defenderam com honra o clube nascido da negação. Vi Nelson Silva puxando consigo uma fila sem fim de colorados anônimos cantando o Celeiro de Ases.
Todos rumaram para trás do contestado camisa 1 e formaram uma barreira intransponível. Nada, desse ou de qualquer mundo, passaria por ali.
Horácio Elizondo apontou o centro do campo, e o estouro de lágrimas e risos expandiu o universo para muito além do infinito. O anjo rubro e branco fez o Beira-Rio levitar. Tal qual um cometa, o monstro sagrado de concreto voou por toda a América, pintando o continente de um vermelho sangüíneo e brilhante, ainda não visto nesse planeta. Dos céus, querubins e seres imortais choravam desde a madrugada anterior, emocionados e ressentidos por não terem alcançado a graça de ser colorado. Banhada e abençoada pelas lágrimas celestes, a nação das cinco estrelas não conseguia compreender o tamanho da felicidade que vivia. O predestinado camisa 9 ergueu a taça sobre a cabeça e tocou os pés de Deus. Aquele time, aquela torcida e aquela geração haviam ido, definitivamente, aonde ninguém fora. O Internacional não é maior do que tudo. Mas é tudo o que há de maior.
Na noite das asas vermelhas, eu vi o Internacional campeão da América. Eu fui o Internacional campeão da América. Mais do que ontem e menos do que amanhã, eu sempre serei Sport Club Internacional.
Campeão da América de 2006.
Adaptado de "Histórias Coloradas II"
No caminho para a casa do Alexandre, onde faríamos um churrasco e veríamos o jogo, sozinho, eu pensava no que poderia acontecer. Fiz um giro em todas as possibilidades. Da alegria infinita à tragédia fúnebre. Minha única certeza era de que, independente do desfecho da noite, eu continuaria colorado. Como quando nasci. Como quando hei de renascer. Nesse mundo. Ou em outro. Já não parecia estar só. Sentia uma estranha presença. Como se me observassem. Tive a impressão de ver asas vermelhas cruzando o céu.
Em vários prédios os pendões encarnado e branco tremulavam. Lindas e bagualas como o Pampa. Novamente, éramos nós contra o mundo. Éramos Farrapos de uma nova era. Maragatos de chuteira. Peleando em grito e canção. O colorado é a hipérbole do gaúcho.
Meu rádinho inseparável notíciava que as filas que circundavam o templo alvi-rubro eram semelhantes a veias. Por elas, corria sangue de um rubro único, apaixonado. Bombando amor em quantidade inimaginável para dentro do estádio. Nas arquibancadas, 60 mil irmãos se acotovelavam, na esperança de ver e viver o momento mais importante desde que o S, o C e o I se entrelaçaram. Juntos, escreviam a história.
Quando a Academia do Povo apareceu, o concreto começou a arder. Como se abrissem as portas do Inferno, a arena um dia imaginada por Ephraim Pinheiro Cabral virou um caldeirão homérico. A fumaça brotava de baixo do gramado, do aterro, da água fervente, do umbral, e se espalhava pelo ar, tomando o mundo.
Apavorada, a torcida adversária se ajoelhava, pedindo clemência a Deus. Convicta de que o juízo final era chegado. Não haveria salvação. Deixariam a vida embalados por um réquiem de milhares de vozes coloradas. Teriam uma morte doce e vermelha. Mas ainda não era hora.
Antes de chegar até meu destino, novamente, notei asas rubras rasgando a penumbra. Um delírio. Ou não.
Postamo-nos em frente a tv. E com o breu dissipado, a bola rolou. O Beira-Rio pelava. Pulsava. Uma corrente de força desconhecida cruzava as estruturas da casa do Clube do Povo. O chão dava choques. Eletrizava de vibração quem nele pisava. A cada passe são-paulino, o Gigante bufava. Trovejava. Enviava raios em forma de gritos, apupos e xingamentos. Até que a terra tremia, e o time de Abel Braga recuperava a posse. Eu não via jogadores. Não identificava feições, nomes ou números. As camisas vermelhas jogavam sozinhas. O manto sagrado corria por vontade própria. Vida própria. Marcava. Bicava. Urrava. Transpirava. Rasgava a grama. Levantava a leiva. Batalhava cada segundo como o último. Era raça, amor e algodão. Era guerra. Era guerra!
Em novo flash, vi uma mão etérea tocando a bola e tirando-a do domínio seguro de Rogério Ceni. Empurrando-a até Fernandão. Até a explosão. Até o delírio incontido de uma nação. O sonho quase secular começava a ganhar forma de América. Chorando e sorrindo, a família colorada teve a certeza de que sairia dali para um carnaval adiado há três décadas.
No intervalo, ninguém podia imaginar o sofrimento reservado para o segundo tempo. O gol de Fabão foi uma injeção cavalar de ansiedade. Retesou músculos. Fechou semblantes. Empalideceu. Assassinou unhas. Arrancou cabelos. Despertou tiques. Com o rosto enfiado entre as mãos, eu pedi ajuda.
A partida foi reiniciada, mas algo fora do gramado me chamou atenção. Em cima da marquise central da superior, uma figura cintilava. Trajava vestes encarnadas e trazia às costas inenarráveis asas da mesma cor. A plumagem do arcanjo rubro descia dos céus e roçava a coréia. Estático, com as mãos abertas, parecia abençoar a multidão,alheia à sua presença. Meu coração não batia. O espectro fechou os olhos e apontou a destra para a goleira do placar eletrônico. A goleira de Figueroa. A goleira do gol mil. A goleira iluminada. A goleira divina. Seguindo o seu movimento, enxerguei Tinga se agachar e ouvi o Gigante gritar como nunca havia feito antes. As lágrimas embaçaram minha visão. Me voltei para o telhado que traz a inscrição da maior torcida do Rio Grande. Mahicon Librelato não estava mais lá.
A loucura que tomou conta do Beira-Rio parecia o prenúncio da tranqüilidade, mas logo foi interrompida pela expulsão do lanceiro negro da Restinga. A pressão são-paulina teve proporções inéditas no futebol brasileiro. Nunca, um time foi tão acossado e amassado dentro de seu próprio campo. Lenílson aproveitou a falha de Clemer, e o mar vermelho petrificou. Colorados de ontem e de hoje se desesperavam. Pediam o fim do jogo. Temiam o pior.
Suplicavam a América.
O filme de todos os fracassos e derrotas do Internacional passou na minha mente. Revivi meus 26 anos de espera e apoio incondicional. Minha existência marcada pela defesa das cores do clube. Por insultos e flautas. Por humilhações e soberbas. Por raiva contida e choro. Minha vida do ‘quase’. Do vice. De títulos que não pareciam feitos para mim. De glórias guardadas apenas para os outros.
Enquanto minhas lágrimas molhavam o ramo verde que trazia no peito, o serafim colorado pairava de novo sobre o Gigante. Dessa vez, não estava só. Um séquito de incontáveis espíritos desciam por suas asas e entravam em campo. Vi jogadores com trajes do início do século passado. Todo o primeiro escrete de 1909. Vi os irmãos Poppe Leão, Vicente Rao e Penha. Vi Pirilo, Javel e Risada. Vi Tesourinha e o Rolo Compressor. Vi o português Pinheiro Borda, Meneguetti, Funchal, Teté, Mestre Ênio Andrade, Abílio dos Reis e tantos outros que defenderam com honra o clube nascido da negação. Vi Nelson Silva puxando consigo uma fila sem fim de colorados anônimos cantando o Celeiro de Ases.
Todos rumaram para trás do contestado camisa 1 e formaram uma barreira intransponível. Nada, desse ou de qualquer mundo, passaria por ali.
Horácio Elizondo apontou o centro do campo, e o estouro de lágrimas e risos expandiu o universo para muito além do infinito. O anjo rubro e branco fez o Beira-Rio levitar. Tal qual um cometa, o monstro sagrado de concreto voou por toda a América, pintando o continente de um vermelho sangüíneo e brilhante, ainda não visto nesse planeta. Dos céus, querubins e seres imortais choravam desde a madrugada anterior, emocionados e ressentidos por não terem alcançado a graça de ser colorado. Banhada e abençoada pelas lágrimas celestes, a nação das cinco estrelas não conseguia compreender o tamanho da felicidade que vivia. O predestinado camisa 9 ergueu a taça sobre a cabeça e tocou os pés de Deus. Aquele time, aquela torcida e aquela geração haviam ido, definitivamente, aonde ninguém fora. O Internacional não é maior do que tudo. Mas é tudo o que há de maior.
Na noite das asas vermelhas, eu vi o Internacional campeão da América. Eu fui o Internacional campeão da América. Mais do que ontem e menos do que amanhã, eu sempre serei Sport Club Internacional.
Campeão da América de 2006.
Adaptado de "Histórias Coloradas II"
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